quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

UM CONTO DE NATAL


O vento soprava-lhes segredos e trazia notícias de outros lugares… Falava das cidades tão diferentes dos pinhais e também dos homens, estranhas criaturas que lá viviam. O renque de pequenos pinheiros, ouvia com a atenção e curiosidade próprias da infância. Lá do alto, os seus progenitores, sorriam meigamente e abanavam as folhagens num terno sussurro.
Entre os pinheirinhos, havia um mais atrevido e curioso. Estava sempre à frente nas perguntas e era incansável a fazê-las. Quando o vento partia, suspirava com pena, mas passava a ser ele o centro das atenções. Sonhava alto, divagava e era tão imaginativo que a todos encantava.
_ Como desejo crescer para ver mais longe! Espreitar o mundo lá de cima. E aquela história da árvore de Natal! Levam uma, ainda criança e rodeiam-na de cor e luz. Deve ser tão bom! Gostava de ser uma dessas árvores de Natal.
_ Como podes dizer isso? Respondeu o companheiro do lado.
_Se alguém resolve vir aqui buscar algum de nós, será para sempre, não mais voltará!
Pensativo, o nosso piheirinho respondeu:
_ Acho que mesmo assim valeria a pena. Viver menos, mas tão intensamente, tão rodeado de glória e atenção. Além de que seria um previlégio ver o mundo de perto. Saber como ele é. Não me importaria!
Ouviu-se uma gargalhada terrível que permaneceu alongando-se nos espaços do pinhal e se prolongou para além dele. Os tenros pinheiros, tremeram de medo e calaram-se de imediato. Aquele som, sabiam muito bem, ser o riso do génio das florestas e pelo tom, não augurava nada de bom.
A noite veio fria como competia a Dezembro. De manhã, as pequenas agulhas dos nossos amiguinhos estavam cobertas por uma camada transparente e fria onde se reflectia a luz tímida do sol. A manhã decorria tediosa entre nuvens de vapor evolando-se da terra e formando pequenas brumas e nevoeiros, tornando vultos imprecisos os conhecidos vizinhos. Toda a floresta denotava a vida habitual. As árvores adultas há muito despertas pela luz, conversavam amenamente. A passarada chilreava num orquestrar desencontrado de trinidos e os outros animais pssavam devagar ou correndo para as suas diárias fainas de sobrevivência.
De repente, tudo parou. Lá ao fundo, começou a surgir um novo som. Era um roncar parecido a um trovão, mas não o era. Era sim um objecto andante de dentro do qual saíram algumas das tais criaturas humanas. Já não era a primeira vez que alí iam e o vento contava histórias dos seus costumes pelo que todos as conheciam e desconfiavam da pacificidade dos motivos porque ali estavam.Vozes encheram a floresta. Árvores pequenas eram abanadas e observadas com minúcia. Uma delas, precisamente o nosso conhecido pinheirinho curioso, tremeu ao contacto daquelas mãos desconhecidas e ásperas no pegar. Depois, sentiu as dores de quem era agredido até ser separado da terra. Arrancado pela raíz pouco profunda e forte para o segurar. Sem tempo para despedidas, viu-se dentro do tal objecto andante, a caminho, pensava ele, da tal cidade tão falada pelo vento.
Assim foi. Chegado á cidade ficou á espera num vasto espaço até que foi levado para um átrio onde o plantaram num grande vaso, o cobriram de laços, luzes e bolas coloridas.
De início, sentiu-se receoso e expectante, sem perceber muito bem o que estava acontecendo mas quando todas as luzes se acenderam e reparou melhor no mundo à sua volta e no reflexo que o espelho lhe transmitia de volta, ficou maravilhado. Era um grande espaço onde transitavam os tais humanos de todos os tamanhos e vestidos de variadas cores.Sempre atento, foi aprendendo e fixou todas as novidades: Pessoas, assim chamavam aos humanos, passavam de um lado para oo outro, transportando embrulhos coloridos. Alguns, mais pequeninos, as tais crianças que o vento nomeava, paravam extasiadas a olhá-lo. Sentado num faustoso assento, uma dessas pessoas mais crescidas, vestida de vermelho e branco. Chamavam-lhe Pai Natal e as criancinhas deliciavam-se à sua volta. Uma palavra muito dita era Natal e ele percebeu ainda que tudo aquilo tinha a ver com essa festa assim chamada.Um dia havia de perguntar mais ao vento sobre tudo aquilo. O vento não passava por ali e o nosso amigo sentia-se muito solitário mas ao mesmo tempo muito vaidoso da sua figura chamativa e feliz pela experiência que estava a viver. Foram dias inesquecíveis mas que terminaram drasticamente. Um dia, as luzes de repente apagaram-se e o escuro dominou. O escuro, o vazio e a tristeza.
No dia seguinte, mal clareou, apareceram muitas pessoas que num ápice desfizeram todo o cenário envolvente e também o despojaram de todos os enfeites, arrancaram abruptamente do vaso e o deitaram numa lixeira junto de restos festivos que variavam de comida a papéis, laços e fitas, tudo amarrotado, tal como ele longe da glória de há dias. Também havia outros pinheirinhos por ali abandonados. Quis falar-lhes mas a tristeza dominante era grande e a ninguém apetecia conversar.
O vento, única figura conhecida, passava por ali.
_ Olá! (Disse o nosso pinheirinho). Que saudades tenho de casa! Levas-me para lá?
_Meu amiguinho! Bem gostaria mas não posso! Não conseguiria cumprir tal tarefa! Só posso dar-te notícias e dizer das muitas saudades que todos têm de ti e da falta que fazes naquele renque de pequeninos. As tuas perguntas originavam conversas tão interessantes! Nuncca mais tal aconteceu.
E o vento lá partia de novo, para as suas constantes andanças, deixando o pinheirinho solitário, aguardando o ignorado seguimento da sua vida. Com o passar dos dias, começou a sentir-se cada vez mais fraco. Inutilmente dava voltas à sua fértil imaginação, para encontrar uma saída. Lembrou-se do génio da floresta e daquela gargalhada sinistra, no dia em que sem saber o que dizia, desejou aquele destino.
_ Génio! Tem pena de mim! Ajuda-me! Estou arrependido do que disse naquele dia! Como gostava de estar na floresta junto dos meus pais e amigos! Por favor ajuda-me! Não me deixes morrer, aqui abandonado!
Mal tinha acabado de expressar a sua sentida oração, ouviu vozes e sentiu uma criança a agarrá-lo dizendo:
_ Este, pai! Levamos este!
_ Está bem! É bonito e tem um bom tamanho! Vai ficar bem no jardim da nossa casa!
A criança, um menino, dava saltos de contente.
_Oh pai! Que bom! Vai ser o meu amiguinho.
E assim foi. A sua vida continuou calma e feliz entre flores e arbustos bem tratados como também ele passou a ser. À frente desdobrava-se uma rua onde via o vai e vem de pessoas e carros e onde foi ao longo da vida aprendendo sempre mais e mais, pois nunca perdeu aquele olhar curioso da infância.
Por vezes lembrava com saudade os seus pais e amigos mas ganhara novos amigos e o menino visitava-o todos os dias, sentava-se à sua sombra e contava-lhe tudo o que ia acontecendo.
No ano seguinte, na sua frente, foi plantada uma outra árvorezinha da sua espécie a qual lhe sorriu gaiteira e lhe provocou uma forte batida no coração. Uma nova era começava…
18 de Dezembro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

TIVE UM SONHO

Era eu! E tinha uma varinha de condão! Não sei como me viera ter às mãos. Mas, estava ali, brilhante, acenando-me à insatisfação e insegurança. Era como se persistentemente me dissesse:
- Vai! Usa-me! Sou tua!
Tantas vezes me defrontei com a angústia da impotência! Tantas vezes lamentei não ter forma de ultrapassar os obstáculos. Agora tinha-a e não sabia como usá-la. Uma vózinha dentro de mim, incitava-me segredando:
- Que mais queres? De que mais precisas? Não era este o teu desejo, a tua necessidade maior?
Resolvi-me a sair do obscuro daquele túnel e caminhei. Ainda sem sentido, sem saber para onde, mas com o conforto dado pela certeza, de levar comigo a varinha de condão e a sua mágica, sendo-me permitido ser fada.
Ao caminhar sem direcção, encontrei uma direcção. Um cartaz! Pregado na parede, antes das escadas, à saída do Metro. A fotografia dum banco de jardim. Sobre ele, em confusão, jornais e cartões sublinhavam a ausência de alguém. Vulto imaginado num sono a coberto das vistas, por tão frágeis agasalhos. No chão, tralhas metidas desordenadamente em sacos de plástico notificavam, os parcos haveres desse vago alguém. Uma única frase confirmava a identificação do cenário “ A Cama do Mário”.
Esta frase entrou em mim, sacudiu.me, arrepiou-me. A varinha mágica agitou-se-me na mão e segredou:
- “Mário!... Mário!... Mário!... Mário!...”
Caminhei de novo. Agora, com um sentido definido e uma direcção assumida. Vi num portal sombrio e sujo um vulto enrolado em cobertores e tapado por cartões. Aproximei-me e decidida toquei-lhe com a varinha de condão.
- Acorda Mário! Acorda!.
O Mário, depois da minha prolongada insistência acordou. Estranhou-me e insultou-me por lhe ter interrompido o sono. Não ouviu o que tinha para lhe dizer. Nem quis saber se vinha por bem ou por mal. Indiferente, voltou a fechar os olhos e não mais respondeu às minhas insitências.
Decepcionada, mas não vencida, continuei a marcha. Mais à frente, um vulto debaixo dum banco, deixava adivinhar uma forma humana, aninhada em posição fetal. Toquei-lhe cuidadosamente com a minha varinha e chamei muito baixinho:
- Mário! ... Mário! … Acorda! Sou eu, uma fada tua amiga. Estou aqui, para te ajudar!
Abriu os olhos. Fitou-me estranhamente e disse:
- Ninguém ajuda ninguém! Há os que sobram e os que nunca encontraram o seu lugar. Há ainda os que instalados, de mais não querem saber.
- Não, Mário! Tu ainda podes encontrar o teu lugar… Há quem te queira ajudar…
- E sabes se eu quero ser ajudado? Andei por aí, vi tudo o que havia para ver e não quero assistir a mais nada. Deixa-me dormir o sono do esquecimento…
Voltou a enrolar-se no mal cheiroso cobertor, envolveu-se em jornais, depois tapou tudo com um plástico. Fiquei a olhar aquele vulto indiferenciado, mergulhado em silêncio, só quebado pelo som de pequenas gotas de água, caindo do banco sobre o plástico num ritmado ping. … ping. …
Esta segunda derrota, destruíu as minhas esperanças. Fitei a varinha com descreça. E pareceu-me diferente. Já não brilhava. Era só uma inútil vara, de um qualquer e vulgar material. Ela, sem magia, objecto como qualquer outro. Eu, anulado o papel de fada, humanizada, perdia-me afundada no costumado mar de insatsfações, dúvidas e incertezas. Pousei a varinha não mágica no passeio e prossegui. Foi então que vi o terceiro Mário. Estava sentado num degrau, debaixo duma arcada. A seu lado dormitava um cachorro.
Parei, simplesmente a olhá-lo. Aquele rosto, sobressaindo na semi-escuridão desse húmido recinto, tinha alguma coisa de familiar. A pele muito branca, as barbas negras, compridas. Os olhos brilhantes. Um rosto a indiciar a mocidade presente, mas perdida nos meandros das ruas. O cão, percebendo a minha presença e atenção, rosnou e de seguida ladrou num aviso ameaçador.
- Quieto, Bembom!- Disse o Mário.
O facto de ter apaziguado o cão, trouxe-o até mim como um aliado. Ninguém que só quisesse ajudar… tirar da rua, mas alguém, à espera dum provável diálogo. E aconteceu! A conversa foi fluindo naturalmente.
- Está frio companheiro?
- Aqui está menos. Chega-te cá! Tens um cigarro?
E a pouco e pouco a conversa aconteceu. Sem intenções, sem objectivos escondidos, sem camuflagens, com naturalidade própria de dois seres que se encontram na sua humanidade, irmanados num momento de vivência conjunta. Não tive coragem de lhe perguntar porque ali estava, se gostaria de sair da rua, etc., etc… Mas tanto foi dito, e um pequeno e ténue elo ficou tecido. Quando clareou e me propuz partir, ficou no ar a possibilidade dum novo encontro. E sabe-se lá o que a seguir virá! Como um amigo meu, sempre diz, “Certezas, só no presente”.
Pensando nos eventos dessa noite, dei-me conta do quanto mais fizera pelos meus próprios meios, do que com a ajuda da varinhas de condão. O sobrenatural está em activar a própria capacidade de fazer.
Suspirei com alívio, mais leve de angústias, mais confiante e em paz comigo. Nesse suspiro senti-me acordar.
Tudo fora um sonho!... Por momentos, quase um pesadelo mas acabando com a suavidade dum sonho…
Jesus Varela

sábado, 2 de outubro de 2010

OS NOSSOS ESPAÇOS

Os nossos espaços são uma extensão de nós. Passamos por alguns por pura necessidade e a repetição faz com que nada signifiquem, para além de lugares de passagem. Talvez um dia, já longe dessa rotina, ganhem o significado saudoso e grato dum passado sem regresso, sobressaindo da penumbra, a descoberta das coisas boas.

Existem lugares, para sempre agarrados às memórias mais significativas. A casa onde crescemos, com todos os seus cantos memorizados à nossa dimensão de então, envolta nos cheiros, associados a lembranças. Os locais de brincadeira, a escola e tantos outros, assinalando marcos importantes, ficaram afectos instalados.

O espaço onde vivemos maioritariamente em tempo, como os locais de emprego onde passámos consecutivos dias, meses e anos. Quantas alianças e amizades com outras vidas aí encontradas quotidianamente. Quando a ausência acontece, o local importa, surgindo envolto nas lembranças das relações estabelecidas e dos momentos vividos.

As casas onde se habitou ou habita, são espaços de extrema importância. São o nosso próprio espelho, com móveis e objectos a nosso gosto, por nós adquiridos ou adoptados, mantidas e conservadas pelos nossos cuidados. Aí rimos, e choramos, numa sucessão de bons e maus momentos, frequentemente partilhados. Espaço que deixa de ser uma casa para passar a ser um “lar”, palavra valiosa, pela carga afectiva que contém. Mesmo quando nesses espaços ecoam discussões contínuas, gritos, cenas dramáticas, vivem-se doenças graves, suportam-se e escondem-se os efeitos de vícios, frequentemente continua a existir o sentido do comum, dos laços, do dever. Quando a união familiar subsiste, a morada pode transitar de um lugar para outro, mas o espaço ocupado é sempre “lar”.

O “lar” também se perde e desgasta quando as relações familiares passam a não ter expressão de conjunto, centrando-se na personalização individual. O “lar” desfaz-se então, e cada um vai tentar novos laços, novos afectos, novos espaços seus. Quando não acontece a separação física, o “lar” passa progressivamente a ser “pensão”. Os espaços comuns esvaziam-se com a perda dos momentos comuns. Cada qual, faz do seu quarto o lugar permanente. Contudo, estão lá todos, usando a casa que um dia foi “lar”, numa confusão sobre os deveres e direitos, sem se perceber até onde subsistem.

No passado, era comum as pessoas gravitarem uma vida inteira nos mesmos espaços. Hoje, cada vez tende mais a não acontecer assim. Nasce-se num local e andarilha-se por um sem número de outros, lendo-se nos passos dados uma história de vida.
Jesus Varela

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MARCA ANÓNIMA

Era um vulto enrodilhado. Identifiquei umas calças de ganga azuis e uma camisola da mesma cor. O braço esquerdo rodeava a cabeça deixando visível a nuca. Cara voltada para a calçada, nada foi visto. Tudo adivinhado…

Uma jovem de 16 ou 17 anos, vulto esguiu e flexível, sentada no portal duma garagem, debruçada sobre o passeio, enrolada sobre si mesma, numa qualquer rua de Lisboa. Mas o que me saltou à vista e me fez reparar, foi aquele gesto, à partida sem sentido, mas podendo ter o mais profundo deles.

Com um marcador preto, cobria integralmente um paralelipípedo da calçada. Só um. Camada sobre camada, com gestos repetitivos e impregnados de força. Como quem descarrega raivas acomuladas, deixando numa marca sem rosto, o significado daquele momento. Restará uma realidade perdida e ignorada, ausente da pessoa e circunstância que a criaram. Marca anónima de alguém e de alguma coisa.
Jesus Varela

A NUVEM

“Não lhe faço mal! Dê-me qualquer coisa. Tenho fome!”. Foi assim que me abordou. Olhei-a com estranheza. Porquê a primeira parte da frase? A sua aparência inspirava mais pena do que medo. Pequeno vulto feminino. Baixa e muito magra, cabelo curto, alourado. Por todo o corpo crostas, confirmavam o cancro de pele que informou ter. A fome talvez fosse também uma realidade. Era bem possível!

Duas vezes a enconrei no espaço duma hora e sempre a mesma ladainha, sempre a mesma introdução…

Fiquei a meditar naquela mulher ainda jovem. “Tenho fome” uma frase que toca, atormenta e motiva a dar. Uma frase mágica, pois lembra essa necessidade básica à vida. Uma necessidade comum tornada realidade quando faltam meios para a satisfazer. Todos podem sentir fome, se as circunstâncias se compuserem nesse sentido. Nada é seguro na vida, e o mais rico hoje, pode amanhã ser apanhado numa situação para a resolução da qual seja impotente. “Tenho fome”, frase universalmente entendida e temida mesmo pelos que nunca a sentiram, não a sentem e pensam que jamais virão a senti-la.

Que vida aquela, irmã de tantas outras, passando os dias a calcorrear a cidade, de mãos estendidas, mendigando a quem passa. Perdidos objectivos, tapados horizontes, uma só certeza: o dia de hoje, por entre dores e vícios, o tanto que é uma vida, perdida no nada dum dia a dia, espera por um amnhã que traz a mesmíssima coisa…

E os encontros com outros, continuam a acontecer. Cruzamento com passos dirigidos para programados percursos, sem interromperem, alterarem ou retardarem , depois daquele breve encontro. Tal como os dias continuarão a sua torrente natural de sequência clara e escura, quente e fria, chuvosa e ensolarada. Uma nuvem passa nessa paisagem e só por momentos ensssobra a claridade tornando-se notada…

Aquele não era um dia especialmente bom. Não raiava a luz da felicidade ou do contentamento dentro de mim mas "ela" foi a nuvem que algo ensombrou e me levou a vê-la.
Jesus Varela

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

CONVERSAS COMIGO

Sonolenta fechou a gaveta e lá deixou os rascunhos daquele dia. Fora longo, cansativo. Triste? Alegre? Um pouco de tudo ou muito de cada. Sempre assim era… Os olhos cavados que o digam. Quantas vezes as lágrimas rolam insubmissas à vontade de não dar nas vistas, pois acontecem em qualquer lugar. Só é preciso o pensamento desocupado dar livre curso aos arquivos reconditos onde fecha os desgostos e as desilusões. Mágoas de poder ter sido mas não foi. Causas e consequências encadeadas num dia a dia contínuo, vindo de longínquos tempos…

Nunca se pode voltar para trás e refazer tudo. Há construções já erguidas, endurecidas, cimentadas, impermeáveis à alteração. Viver é tecer um longo cordão entrançando pedaços de vidas, imprimindo marcas e selos no íntimo dos actores dessa peça contínuamente representada. Também não dá para mudar de rumo. A decisão já não cabe ao nível individual. É colectiva e desordenada num emaranhado jogo de interesses e desamores.

O papel, silencioso confidente, fiel ouvinte, vai registando os desabafos, sem finalidade prevista. Só o intento de desanuviar a carga pesada e tornar suportável o incontornado caos … Assim o inaudito ganha forma e vai habitar o fundo da gaveta. Mais leve, parece ficar por momentos a carga. Ilusão! As crostas agarradas às feridas, nunca saram por completo quando são arrancadas precocemente. Deverá haver um caminho de cura natural, até só restar a cicatriz. Embora não doendo, assinala a dor, por ali passada…

A noite cai. A gaveta perde-se no escuro e os olhos cansados cedem. A força necessária do descanso ganha a batalha ao querer em vigília. A consciência mergulha no sono, também ele leve, dando espaço ao desenrolar de outras peças representando reflexos, anseios, sonhos e frustrações…

Como seria bom dormir profundamente!
Jesus Varela

domingo, 20 de junho de 2010

APRENDER A OUVIR

MOMENTOS MEUS
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REFLEXÃO
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Viver é aprender.
É olhar e ouvir, com sentido de saber…
É dar, mais um passo em cada dia.
É atentar, no choro e na melodia.
É recolha, da dádiva e do prazer,
na plena harmonia, de se ser…
É achar, o sofrimento em cada rosto.
É trazer, algum conforto, a um desgosto…
Ouvir e ver, é aprendizagem permanente.
É um constante esforço, para ser gente.
É um acrescentar à estrutura construída,
na partilha, procurada e consentida…
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FLASH Nº 1
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O frio da madrugada rompia a roupa e trespassava os ossos num arrepio. Era um frio parado. Sem vento ou brisa. A noite ia-se embora. Lentamente, emergia um tom rosado, emprestando luminosidade baça, a tudo quanto nos rodeava. As árvores paradas, saiam das sombras e eram vultos transformados sucessivamente pela imaginação. Passavam de algo assustador porque mal definido, a formas reconhecidas como inofensivas, porque a escassa luz e a aproximação as relembrava.
Sentada numa cadeira de palhinha, atrás, na carroça. Olhos ainda ensonados, coração apertado, no vago medo, por atravessar o desconhecido escuro. À frente, os pais iam conversando. Ao som baixo das suas vozes, sobrepunha-se o bater dos cascos do macho, na estrada alcatroada. O início das viagens era sempre assim. Ao romper da madrugada. Com os sentidos despertos e atentos num aguardar indefinido, num aprender a distingir sombras e sons. Tão bem os aprendi que ainda hoje revivem em mim, tão intensos e gratos.
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FLASH nº 2
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O brasido, já não tremia o ar no horizonte. O restolho seco estalava, som adivinhado, porque perdido no embrulho de outros, como o canto das cigarras e dos grilos, o coaxar duma rã, nalgum perdido charco e o murmurar das raras folhagens, semeadas no caminho. Havia ainda o repetido bater dos passos seguros de quem habituado às irregularidades dos caminhos, prossegue com ligeireza. Nuvens alaranjadas pintavam o horizonte lá para oeste, anunciando um amanhã igualmente quente e sequioso de sombras e fresco. O caminho era de terra batida, há muito delineado pelo passar de tanta gente e de carroças. A direcção era o sul. Ouvidos e olhos quase em extase bebiam aquele momento e recolhiam-no religiosamente, como ensinamento precioso do constante renovar, do nascer e morrer em cada dia. Foram passos meus. Ainda pequeninos. Depois mais largos. Passadas sucessivas em dias e anos de tórridos verões alentejanos.
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FLASH nº 3
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Era tímida, mas sincera. Quantas vezes, por não falar me negaram a razão merecida! Foi na escola. Estava muito atrasada, na 3ª classe. Pediam-me exercícios e não mos ensinavam suficientemente. Lutava com os números, o lápis, o papel e a borracha. A folha branca, ficava escura e por vezes rasgada. Filas sucessivas de números perdiam-se e confundiam-se em complicadas e extensas técnicas de divisões e multiplicações, companheiras dos sonhos e angústias nocturnas.
Naquele dia, entre os cadernos amontoados desde manhãzinha, na secretária da professora, estava o meu. Por qualquer interferência maligna, o secreto, íntimo e silencioso pedido, de passar despercebido, ficou por atender, e o meu caderno ganhou vida nas mãos dela. Irritada, tanto nesse dia, como habitualmente, não gostou. De mão estendida, fui receber as reguadas consequentes da situação. Os olhos rasos de água. Os passos inseguros, empurrados pela necessidade de ir, mas travados pelo medo. Ainda a expectativa duma justificação salvadora. Mas não. Só a repreensão e o castigo doloroso. Intensamente doloroso, doendo na carne e na alma, porque essas páginas, fruto de árduo trabalho, eram a verdade conseguida. Mas, o metálico daqueles olhos frios, não sabiam nem queriam ouvir as minhas razões. Tambem eu, não era capaz de as exteriorizar porque naquela relação adulto criança, faltava a capacidade de saber ouvir e não havia vontade de a aprender.
Jesus Varela

18 de Junho de 2010
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- "Aprender a ouvir" Foi tema de desenvolvimento no grupo de escrita criativa, para trabalho individual a apresentar na reunião de 19 de Junho de 2010. Daí nasceram estes "Momentos Meus" . -

sábado, 17 de abril de 2010

SE EU QUISESSE ENLOUQUECIA...


“Se eu quisesse enlouquecia”… Bastava deixar-me arrastar pelo desencanto causado, por muitos acontecimentos à minha volta. O impacto das coisas más é mais forte, destrói mais, do que o das coisas boas constrói. Eu sinto assim! Uma alegria envolve-me durante um tempo curto, causa-me bem estar, mas um acontecimento triste apaga facilmente essa sensação. É verdade, o tempo atenar a intensidade de qualquer desses efeitos. Mas vão-se acumulando resíduos e em mim, com prevalência dos destrutivos sobre os construtivos.

É necessário encontrar forças e lutar contra tal tendência. Contrariar o efeito desse avolumar negativo, é estratégia fundamental, para preservar a sanidade. Se o não fizermos, estamos a escolher a envolvência, cada vez maior, num processo corrosivo, correndo o risco de chegarmos à loucura.
Jesus Varela

(Exercício de Escrita Criativa: Texto escrito a partir duma frase dada "gancho" - 10 minutos)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O QUE VIRÁ DEPOIS DO MITO?

Tudo na vida mudou desde então. Foram-se os velhos hábitos. Horas e horas frente à televisão. Não há convívio familiar depois dum dia de trabalho, quando todos ocupam o espaço comum, na sala ou na cozinha. Lá está o pequeno ecrã. Personagem completamente integrada na família, não dando vez a ninguém. Impondo a sua palavra, aceite, num estatuto de mito que nem passa pela cabeça contestar. Som como pano de fundo, das conversas familiares, presença a desvanecer laços e a alargar distâncias. Desde manhãzinha, para saber do tempo e do trânsito, até ao final da noite, depois de todas as séries e telenovelas, na cozinha, na sala e muitas vezes nos quartos, lá está ela, marcando presença e transmitindo ideias, conceitos e valores, uns ajustados, outros desajustados. Será que algum dia perderá actualidade e interesse? Se assim for, como será preenchido o espaço vazio pela sua ausência? Ou seja: Incontestavelmente, hoje a televisão é um mito. O que virá depois da destruição do mito?
Jesus Varela

(Exercício de Escrita Criativa: Escrever um texto terminado com a seguinte frase: “O que virá depois da destruição do mito” - 10 minutos)

sexta-feira, 19 de março de 2010

UMA VISITA A ALENQUER

Chegados a Alenquer parámos na zona baixa da vila, num largo, junto a uma ponte que atravessa o rio. Local privilegiado, para admirar a beleza natural desta vila presépio, como muitas vezes é chamada. O velho casario eleva-se pelos alcantilados das colinas circundantes, numa beleza quase mágica, com as últimas casas lá no cimo, envoltas em ténue nevoeiro, parecendo suspensas.

Começámos por visitar o Museu João Mário, com um vasto espólio, onde abundam recordações de todo o tipo, ligadas à vida do pintor e sobretudo uma vasta colecção de obras de arte, esculturas e pinturas, algumas da sua autoria e outras, de diversos e consagrados artistas portugueses e estrangeiros, alguns deles, seus amigos. É uma vida que ali está documentada e ilustrada com histórias curiosas e comoventes, algumas das quais, nos foram narradas pelo próprio João Mário, enquanto nos guiava na visita ao museu, no que manifestou uma simpatia e disponibilidade absolutas, tornando esta visita um momento muito especial, do passeio a Alenquer.

O Pároco da vila foi igualmente um guia bastante disponível, que nos contou alguns factos da história de Alenquer para nos enquadrar nas visitas seguintes. Primeiro, a uma igreja, onde em capela própria, se encontra o túmulo de Damião de Góis. Podem aí ser observadas duas pedras, com brasão e inscrições, bem como uma laje tumular, sobre a qual jazem os restos mortais do eminente cronista português.

De seguida, através dum pitoresco percurso por ruelas empedradas que serpenteiam a colina, chegámos à Igreja de S. Francisco, donde pudemos contemplar mais uma deslumbrante vista da vila.

A Igreja de S. Francisco, embora date da época medieval, foi sofrendo várias intervenções ao longo dos tempos, resultando o grosso do edifício actual, duma reconstrução pós terramoto de 1755. No decurso do Século XX, a sua deterioração era substancial, tendo-se vindo a verificar obras de restauro desde há vários anos. Esta igreja tem algumas obras de arte que vale a pena assinalar, tais como: altares de talha policromada, dos finais do século XVIII; uma pia baptismal quinhentista; alguns quadros e imagens importantes, como a virgem do capítulo de características góticas.

Alenquer foi conquistada aos mouros por D. Afonso Henriques. No reinado de D. Sancho I a vila foi doada a D. Sancha, filha do rei, passando desde então a pertencer à casa das rainhas. Por esse motivo, encontra-se ligada a alguns episódios e figuras da história de Portugal.
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Quando iniciamos o regresso, rumo à Praia Azul, vínhamos encantados com a simpatia das pessoas de Alenquer com quem contactámos e com o que da vila vimos e soubemos. Ficou-nos o desejo de voltar.

Fevereiro de 2008
Jesus Varela

quinta-feira, 18 de março de 2010

AO ENCONTRO DE DEUS

Montes de destroços, corpos mutilados, crianças chorando e vagueando sozinhas por entre o caos! Imagens perturbadoras, deixadas pelo terramoto acontecido há dias, no Haiti. Penso: onde está Deus? Sinto vontade de lhe perguntar. Será que me responde?
_ Deus! Estás aí?
_ Como te ensinaram, estou em todo o lado!
_ Também me ensinaram que a tua bondade é infinita.
_ Isso é porque os humanos sempre vêem as coisas à sua imagem e semelhança e tudo constróem conforme os seus interesses.
_ Então não és o nosso pai?
­_ Sou, tal como dos animais, das plantas, até das pedras.
_ Porque não nos proteges e deixas que aconteçam estes cataclismos?
_ Também sou o pai do Universo e portanto, da própria Terra. Criei leis que determinam ciclos e desencadeiam fenómenos. Uns, pelas dimensões atingidas, sobrepõem-se a outros, nas consequências provocadas. Se reparares, em toda a ordem existe a causa e a consequência.
_ Então não vale a pena rezar, ir à Igreja, ouvir missa, etc. etc.?
_ Aí, está outra questão! Podeis tributar-me das mais variadas maneiras. Contudo, esses procedimentos mais do que tendo a ver comigo, reflectem a vossa necessidade de se regrarem e de se desculparem dos próprios erros...

E Deus desapareceu do diálogo, deixando-me a pensar em tudo o que disse.
Jesus Varela
(Exercício de "Escrita Criativa" - 10 minutos)

domingo, 14 de março de 2010

AUTO RETRATO

Sou?... O quê?... Quem?... Será que me conheço na totalidade e na verdade?
_ Não sou bonita, nem feia! Depende dos olhos de quem me vê. Não posso ver-me porque nem o reflexo no espelho me corresponde.
_ Não sou boa nem má! Para uns, serei uma coisa, para outros serei outra…
Como posso ainda saber o que sou, se cada momento me acrescenta algo de novo?
Direi então: De mim, tudo o que sou, não sei!... Mas sou alguém, amalgama talvez arrumada do adquirido, alisando espaço para o que vier…
É tudo!
Jesus Varela
(Execício de Escrita Criativa - 10 minutos)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

MENDICIDADE

Estou a falar de Lisboa. Estou a falar do Metropolitano. Aconteceu ontem. Vi-o mais uma vez. Vou chamar-lhe Nuno. Pode ou não, ser o seu verdadeiro nome. Quem, alguma vez o não viu já? Anda a mendigar. Toca num acordeão, sobre o qual vem um pequenino cão, com um recipiente na boca. Recipiente esse, feito do fundo duma garrafa de plástico, suspenso por um arame. Outro igual, preso ao acordeão. Dois e não um único, talvez porque o peso das moedas, pode ser demasiado grande para as forças do cãozinho e isso poderia inibir a adesão dos possíveis benfeitores. Há anos que esta cena se repete. Agora o Nuno será um jovem, talvez a rondar os 20 anos, mas quando tinha 10 ou 12 já o fazia da mesma maneira. Houve a intervenção de organismos como a Segurança Social e a Justiça mas nada resolveram…
Medito, sobre o jovem que foi uma criança forçada a fazer aquilo e que hoje o faz de livre vontade, em vez de ter seguido outro caminho que lhe trouxesse uma autonomia digna, conquistada pelo seu trabalho e capacidades. Penso também no pobre cão, forçado àquela posição durante horas, carregando com as moedas. Será o mesmo cão, ou será outro? Se é o mesmo, estará com muita idade. É possível que seja outro, amestrado da mesma forma.
Penso ainda, naqueles que sorriem à situação e abrem a bolsa. Ontem, uma criança ficou maravilhada com o que viu e o pai desembolsou uma moeda. Havia outras moedas nos dois utensílios de recolha. Pareceu-me que aquele estratagema surte mais efeito, do que outros que observo no mesmo meio de transporte.
Penso sobretudo que enquanto os destinatários daquele e doutros espectáculos, virem só o engraçado, e o falsamente terno de cada quadro e ignorarem o que estará por detrás, imediatamente perceptível ou até imaginado, a situação não mudará para os Nunos que escolhendo o caminho mais fácil, se ficam pelas vias da mendicidade e doutros comportamentos associados.
A todos cabe um papel importante no banir de tais situações, não as viabilizando ao embarcar nelas…
Dezembro de 2009
Jesus Varela

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

"JUNTANDO PÉROLAS"

Pérolas são os passos dados na vida. Pérolas resultantes do ter vivido! Pérolas ainda, porque significam uma experiência única, um privilégio! Ter estado neste mundo, mesmo que tão de passagem, (mais de passagem para uns do que para outros), e ter vivido, é por si só uma fábrica de pérolas…
Mas, como saem essas pérolas! Como numa mesma vida, elas são tão irregulares! Umas brilham, redondas, perfeitas. Outras, cheias de rombos, de altos e baixos, sem o brilho, que lhes foi ofuscado pelo sofrimento… Como se consubstanciaram em lágrimas, correram nos rostos, cavaram sulcos profundos e esconderam o terno e nacarado brilho característico das pérolas!
Os velhos trapos, ficam vulneráveis, esgaçam facilmente, e as cores vão desbotando. A sua fragilidade vai-os relegando para a arca dos trapos, vai-lhes dando funções ainda úteis mas depreciativas, onde se desgastarão progressivamente até deixarem de ser pano e restar um emaranhado de fios podres e inúteis, tão inúteis que já nem servem para lavar o chão e terminarão por aí ao pó, ao vento e à chuva, esquecidos, pisados, misturados com lama, na terra, até que com ela se confundam…
Há gentes tratadas como trapos destes. Onde estão as suas pérolas? Nem a recordação delas prevalece numa mente descolorida, desmemoriada, esvaziada… Do colar só resta a sequência, o fio que deveria receber e arrumar as pérolas, os dias, com tamanhos flutuando nas vivências de cada um… O mesmo tempo medido em várias dimensões, e em variados padrões…
Outros, são cuidadosamente arrumados em prateleiras, criadas para esse fim. Aí, estão ao abrigo da chuva e do vento, calmamente aparando os seus temporais interiores, fustigados pela falta de amor, de carinho, pela presença da saudade do seu próprio espaço, da sua própria vida que lhe é negada, arrebatada, decidida com o seu querer forçado ou alienado ou esquecido ou incapacitado, mas para sempre perdida a fábrica das pérolas perfeitas e belas.
Há ainda os que lúcidos e conscientes de que as capacidades se foram, aceitam docemente o que lhes traga certeza do cumprimento das necessidades básicas. São talvez os que nunca tiveram sonhos e viveram sem interrogações, sempre numa atitude de braços abertos ao destino…
Mas há os que continuam a não acreditar que com os anos vem a ruína e teimam em encontrar sempre novos caminhos, que tornem os dias úteis, contáveis e ridentes. Bem-haja a estes que não sendo muitos, são os maiores em exemplo. Louvemos ainda aqueles que ajudam, quer em ambiente familiar ou fora dele, a manter esta sanidade do gosto pela luta e pela vida…
São assim, tão variadas as pérolas desse colar, para quem as vive ou viveu, não raras vezes, tão descoloridas para quem as olha! Todas transportam o vivido, a experiência o sabido. Pelos ancestrais conhecimentos, pelas raízes biológicas, afectivas e cognitivas ganharam o direito a ser olhadas, admiradas, respeitadas e sobretudo acarinhadas, por todos os que num afã pleno de vida e de ascensão, estão no auge, a fabricar as suas pérolas.
Jesus Varela
(A ideia de que os anos vividos são pérolas acomuladas, foi retirada há tempos, do blog duma amiga (http://jelicopedres.blogspot.com) sugerindo-me esta divagação sobre o tema)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

RETALHOS DUM DIA A DIA

Quantas pessoas passam, no Terminal do Campo Grande, todos os dias, de manhã á noite, num entrar e sair frenético!
É assim a vida da cidade. Passamos no mesmo sítio todos os dias, como cegos. Passei ali milhares de vezes. Sei que existe cá fora uma florista mas nunca olhara com atenção para ela ou para o espaço que utiliza.
Há dias, uma mulher, sentada ao meu lado no autocarro, comentou: “Coitada, com aquela idade já deveria estar em casa a descansar”. Olhei pela janela e percebi que falava da florista. Mas ia tão absorta nos meus pensamentos, que nem nesse instante lhe prestei atenção.
Dias depois, de manhã, ao descer do autocarro e quando ia entrar na estação, vi a velha florista que carregava vasilhas com água. Eram quatro e enquanto andava alguns metros, com duas vasilhas, deixava pousadas no caminho as outras duas, que de seguida ia buscar. Assim, por etapas trazia a água, provávelmente para mergulhar as flores durante o dia.
Num momento vi tudo. A sua idade que deve ser muita, o seu corpo, magro e curvado, o seu ar cansado mas vivo, o esforço que despendia ao carregar a água, aquela multidão que por ela passava num vai e vem automático, sem olhar, sem ver, sem ajudar.
Fiquei parada, com vontade de gritar: “ajudem”. Não o fiz e dei-me conta de que o espaço entre as vazilhas e o local onde estavam os haveres da venda de flores se estava a encurtar cada vez mais. Então fui ajudá-la. Levei duas vasilhas, uma de cada vez, e verifiquei que eram pesadas. Depois, sem lhe dizer mais nada segui o meu caminho e acenei-lhe como resposta ao seu gesto de agradecimento.
Porque o fiz naquele dia? Porque me indignei com a indiferença geral que sempre foi também minha? Provavelmente, porque percebi que se ela trabalha naquela idade e daquela maneira tão dura, deve ter uma razão muito forte. E eu posso vir um dia a passar pelo mesmo. Foi isso? Foi necessário identificar-me com a situação para rasgar a cegueira e entender a injustiça?
Continuei a passar por lá. Um dia comprei-lhe flores. Nunca mais a vi montar o seu local de venda.
Jesus Varela
Junho de 2007

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

UM BANCO SEMPRE À ESPERA


Estava sentada num banco frente ao mar. Rectilíneas ondas varriam a falésia numa extensão medida pelo alcance do seu olhar.
O sol, declinando naquele final de dia de Setembro, emprestava ao pó barrento do chão, às rochas e ao mar, uma tonalidade luminosa dum aloirado brilhante.
Não era um momento de melancolia. Era hora de êxtase e de adeus, até um dia. Era a hora indefinida, do ir dali para outro lugar. Digamos que mais uma vez recomeçava uma etapa do ir e vir que sempre a acompanhava.
Soprou uma leve aragem que agitou o ar e que trouxe o som leve de passos que vêm vindo… Imagina uma sombra que se alonga e desloca. Não a pode ver porque se estende no chão, para nascente, nas suas costas. Adivinha-a e imagina-a longa, esguia e escura… Alguém chega, pára e senta-se no mesmo banco.
Ela disfarçadamente, olha e vislumbra um vulto, sentado a seu lado. Quer e não quer ver melhor. Não sabe se deseja ou não saber se é, quem de relance lhe pareceu. Há algo que diz sim! Há algo que diz não. Não, o volume da silhueta, um enrugar de mãos… Sim, a presença. Algo inconfundível, familiar e indefinível que sempre esteve presente. Companhia de dias e dias, anos e anos. Personagem de sonho, vulto tantas vezes vislumbrado ao longe e nunca encontrado, sempre miragem.
Olha? Não olha? De repente, sem qualquer resposta às suas perguntas sem qualquer consentimento, olha mesmo…
São os mesmos olhos verdes, não iguais. Mais pequenos, meio escondidos entre sulcos, mas a mesma limpidez. Fica siderada! Implacavelmente ligada àquele olhar, sempre tão longe, só imaginado e agora presença.
O sorriso também é o mesmo. Franco limpo, lindo!
Estremece ao sentir na sua mão, o calor de outra a apertá-la.
Como se de muito longe, ouve uma voz (essa diferente), difusa roufenha…
_ Sabia que um dia te encontraria aqui!
Agradecida, fecha os olhos para esconder duas lágrimas que indiscretas e espontâneas se lhe soltam. Deixa-as rolar sobre as faces enrugadas, pois também se chora de emoção, mesmo quando resulta do imaginado.
Jesus Varela