domingo, 20 de junho de 2010

APRENDER A OUVIR

MOMENTOS MEUS
.
REFLEXÃO
.
Viver é aprender.
É olhar e ouvir, com sentido de saber…
É dar, mais um passo em cada dia.
É atentar, no choro e na melodia.
É recolha, da dádiva e do prazer,
na plena harmonia, de se ser…
É achar, o sofrimento em cada rosto.
É trazer, algum conforto, a um desgosto…
Ouvir e ver, é aprendizagem permanente.
É um constante esforço, para ser gente.
É um acrescentar à estrutura construída,
na partilha, procurada e consentida…
.
FLASH Nº 1
.
O frio da madrugada rompia a roupa e trespassava os ossos num arrepio. Era um frio parado. Sem vento ou brisa. A noite ia-se embora. Lentamente, emergia um tom rosado, emprestando luminosidade baça, a tudo quanto nos rodeava. As árvores paradas, saiam das sombras e eram vultos transformados sucessivamente pela imaginação. Passavam de algo assustador porque mal definido, a formas reconhecidas como inofensivas, porque a escassa luz e a aproximação as relembrava.
Sentada numa cadeira de palhinha, atrás, na carroça. Olhos ainda ensonados, coração apertado, no vago medo, por atravessar o desconhecido escuro. À frente, os pais iam conversando. Ao som baixo das suas vozes, sobrepunha-se o bater dos cascos do macho, na estrada alcatroada. O início das viagens era sempre assim. Ao romper da madrugada. Com os sentidos despertos e atentos num aguardar indefinido, num aprender a distingir sombras e sons. Tão bem os aprendi que ainda hoje revivem em mim, tão intensos e gratos.
.
FLASH nº 2
.
O brasido, já não tremia o ar no horizonte. O restolho seco estalava, som adivinhado, porque perdido no embrulho de outros, como o canto das cigarras e dos grilos, o coaxar duma rã, nalgum perdido charco e o murmurar das raras folhagens, semeadas no caminho. Havia ainda o repetido bater dos passos seguros de quem habituado às irregularidades dos caminhos, prossegue com ligeireza. Nuvens alaranjadas pintavam o horizonte lá para oeste, anunciando um amanhã igualmente quente e sequioso de sombras e fresco. O caminho era de terra batida, há muito delineado pelo passar de tanta gente e de carroças. A direcção era o sul. Ouvidos e olhos quase em extase bebiam aquele momento e recolhiam-no religiosamente, como ensinamento precioso do constante renovar, do nascer e morrer em cada dia. Foram passos meus. Ainda pequeninos. Depois mais largos. Passadas sucessivas em dias e anos de tórridos verões alentejanos.
.
FLASH nº 3
.
Era tímida, mas sincera. Quantas vezes, por não falar me negaram a razão merecida! Foi na escola. Estava muito atrasada, na 3ª classe. Pediam-me exercícios e não mos ensinavam suficientemente. Lutava com os números, o lápis, o papel e a borracha. A folha branca, ficava escura e por vezes rasgada. Filas sucessivas de números perdiam-se e confundiam-se em complicadas e extensas técnicas de divisões e multiplicações, companheiras dos sonhos e angústias nocturnas.
Naquele dia, entre os cadernos amontoados desde manhãzinha, na secretária da professora, estava o meu. Por qualquer interferência maligna, o secreto, íntimo e silencioso pedido, de passar despercebido, ficou por atender, e o meu caderno ganhou vida nas mãos dela. Irritada, tanto nesse dia, como habitualmente, não gostou. De mão estendida, fui receber as reguadas consequentes da situação. Os olhos rasos de água. Os passos inseguros, empurrados pela necessidade de ir, mas travados pelo medo. Ainda a expectativa duma justificação salvadora. Mas não. Só a repreensão e o castigo doloroso. Intensamente doloroso, doendo na carne e na alma, porque essas páginas, fruto de árduo trabalho, eram a verdade conseguida. Mas, o metálico daqueles olhos frios, não sabiam nem queriam ouvir as minhas razões. Tambem eu, não era capaz de as exteriorizar porque naquela relação adulto criança, faltava a capacidade de saber ouvir e não havia vontade de a aprender.
Jesus Varela

18 de Junho de 2010
.
- "Aprender a ouvir" Foi tema de desenvolvimento no grupo de escrita criativa, para trabalho individual a apresentar na reunião de 19 de Junho de 2010. Daí nasceram estes "Momentos Meus" . -