quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

TIVE UM SONHO

Era eu! E tinha uma varinha de condão! Não sei como me viera ter às mãos. Mas, estava ali, brilhante, acenando-me à insatisfação e insegurança. Era como se persistentemente me dissesse:
- Vai! Usa-me! Sou tua!
Tantas vezes me defrontei com a angústia da impotência! Tantas vezes lamentei não ter forma de ultrapassar os obstáculos. Agora tinha-a e não sabia como usá-la. Uma vózinha dentro de mim, incitava-me segredando:
- Que mais queres? De que mais precisas? Não era este o teu desejo, a tua necessidade maior?
Resolvi-me a sair do obscuro daquele túnel e caminhei. Ainda sem sentido, sem saber para onde, mas com o conforto dado pela certeza, de levar comigo a varinha de condão e a sua mágica, sendo-me permitido ser fada.
Ao caminhar sem direcção, encontrei uma direcção. Um cartaz! Pregado na parede, antes das escadas, à saída do Metro. A fotografia dum banco de jardim. Sobre ele, em confusão, jornais e cartões sublinhavam a ausência de alguém. Vulto imaginado num sono a coberto das vistas, por tão frágeis agasalhos. No chão, tralhas metidas desordenadamente em sacos de plástico notificavam, os parcos haveres desse vago alguém. Uma única frase confirmava a identificação do cenário “ A Cama do Mário”.
Esta frase entrou em mim, sacudiu.me, arrepiou-me. A varinha mágica agitou-se-me na mão e segredou:
- “Mário!... Mário!... Mário!... Mário!...”
Caminhei de novo. Agora, com um sentido definido e uma direcção assumida. Vi num portal sombrio e sujo um vulto enrolado em cobertores e tapado por cartões. Aproximei-me e decidida toquei-lhe com a varinha de condão.
- Acorda Mário! Acorda!.
O Mário, depois da minha prolongada insistência acordou. Estranhou-me e insultou-me por lhe ter interrompido o sono. Não ouviu o que tinha para lhe dizer. Nem quis saber se vinha por bem ou por mal. Indiferente, voltou a fechar os olhos e não mais respondeu às minhas insitências.
Decepcionada, mas não vencida, continuei a marcha. Mais à frente, um vulto debaixo dum banco, deixava adivinhar uma forma humana, aninhada em posição fetal. Toquei-lhe cuidadosamente com a minha varinha e chamei muito baixinho:
- Mário! ... Mário! … Acorda! Sou eu, uma fada tua amiga. Estou aqui, para te ajudar!
Abriu os olhos. Fitou-me estranhamente e disse:
- Ninguém ajuda ninguém! Há os que sobram e os que nunca encontraram o seu lugar. Há ainda os que instalados, de mais não querem saber.
- Não, Mário! Tu ainda podes encontrar o teu lugar… Há quem te queira ajudar…
- E sabes se eu quero ser ajudado? Andei por aí, vi tudo o que havia para ver e não quero assistir a mais nada. Deixa-me dormir o sono do esquecimento…
Voltou a enrolar-se no mal cheiroso cobertor, envolveu-se em jornais, depois tapou tudo com um plástico. Fiquei a olhar aquele vulto indiferenciado, mergulhado em silêncio, só quebado pelo som de pequenas gotas de água, caindo do banco sobre o plástico num ritmado ping. … ping. …
Esta segunda derrota, destruíu as minhas esperanças. Fitei a varinha com descreça. E pareceu-me diferente. Já não brilhava. Era só uma inútil vara, de um qualquer e vulgar material. Ela, sem magia, objecto como qualquer outro. Eu, anulado o papel de fada, humanizada, perdia-me afundada no costumado mar de insatsfações, dúvidas e incertezas. Pousei a varinha não mágica no passeio e prossegui. Foi então que vi o terceiro Mário. Estava sentado num degrau, debaixo duma arcada. A seu lado dormitava um cachorro.
Parei, simplesmente a olhá-lo. Aquele rosto, sobressaindo na semi-escuridão desse húmido recinto, tinha alguma coisa de familiar. A pele muito branca, as barbas negras, compridas. Os olhos brilhantes. Um rosto a indiciar a mocidade presente, mas perdida nos meandros das ruas. O cão, percebendo a minha presença e atenção, rosnou e de seguida ladrou num aviso ameaçador.
- Quieto, Bembom!- Disse o Mário.
O facto de ter apaziguado o cão, trouxe-o até mim como um aliado. Ninguém que só quisesse ajudar… tirar da rua, mas alguém, à espera dum provável diálogo. E aconteceu! A conversa foi fluindo naturalmente.
- Está frio companheiro?
- Aqui está menos. Chega-te cá! Tens um cigarro?
E a pouco e pouco a conversa aconteceu. Sem intenções, sem objectivos escondidos, sem camuflagens, com naturalidade própria de dois seres que se encontram na sua humanidade, irmanados num momento de vivência conjunta. Não tive coragem de lhe perguntar porque ali estava, se gostaria de sair da rua, etc., etc… Mas tanto foi dito, e um pequeno e ténue elo ficou tecido. Quando clareou e me propuz partir, ficou no ar a possibilidade dum novo encontro. E sabe-se lá o que a seguir virá! Como um amigo meu, sempre diz, “Certezas, só no presente”.
Pensando nos eventos dessa noite, dei-me conta do quanto mais fizera pelos meus próprios meios, do que com a ajuda da varinhas de condão. O sobrenatural está em activar a própria capacidade de fazer.
Suspirei com alívio, mais leve de angústias, mais confiante e em paz comigo. Nesse suspiro senti-me acordar.
Tudo fora um sonho!... Por momentos, quase um pesadelo mas acabando com a suavidade dum sonho…
Jesus Varela