quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

MENDICIDADE

Estou a falar de Lisboa. Estou a falar do Metropolitano. Aconteceu ontem. Vi-o mais uma vez. Vou chamar-lhe Nuno. Pode ou não, ser o seu verdadeiro nome. Quem, alguma vez o não viu já? Anda a mendigar. Toca num acordeão, sobre o qual vem um pequenino cão, com um recipiente na boca. Recipiente esse, feito do fundo duma garrafa de plástico, suspenso por um arame. Outro igual, preso ao acordeão. Dois e não um único, talvez porque o peso das moedas, pode ser demasiado grande para as forças do cãozinho e isso poderia inibir a adesão dos possíveis benfeitores. Há anos que esta cena se repete. Agora o Nuno será um jovem, talvez a rondar os 20 anos, mas quando tinha 10 ou 12 já o fazia da mesma maneira. Houve a intervenção de organismos como a Segurança Social e a Justiça mas nada resolveram…
Medito, sobre o jovem que foi uma criança forçada a fazer aquilo e que hoje o faz de livre vontade, em vez de ter seguido outro caminho que lhe trouxesse uma autonomia digna, conquistada pelo seu trabalho e capacidades. Penso também no pobre cão, forçado àquela posição durante horas, carregando com as moedas. Será o mesmo cão, ou será outro? Se é o mesmo, estará com muita idade. É possível que seja outro, amestrado da mesma forma.
Penso ainda, naqueles que sorriem à situação e abrem a bolsa. Ontem, uma criança ficou maravilhada com o que viu e o pai desembolsou uma moeda. Havia outras moedas nos dois utensílios de recolha. Pareceu-me que aquele estratagema surte mais efeito, do que outros que observo no mesmo meio de transporte.
Penso sobretudo que enquanto os destinatários daquele e doutros espectáculos, virem só o engraçado, e o falsamente terno de cada quadro e ignorarem o que estará por detrás, imediatamente perceptível ou até imaginado, a situação não mudará para os Nunos que escolhendo o caminho mais fácil, se ficam pelas vias da mendicidade e doutros comportamentos associados.
A todos cabe um papel importante no banir de tais situações, não as viabilizando ao embarcar nelas…
Dezembro de 2009
Jesus Varela

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

"JUNTANDO PÉROLAS"

Pérolas são os passos dados na vida. Pérolas resultantes do ter vivido! Pérolas ainda, porque significam uma experiência única, um privilégio! Ter estado neste mundo, mesmo que tão de passagem, (mais de passagem para uns do que para outros), e ter vivido, é por si só uma fábrica de pérolas…
Mas, como saem essas pérolas! Como numa mesma vida, elas são tão irregulares! Umas brilham, redondas, perfeitas. Outras, cheias de rombos, de altos e baixos, sem o brilho, que lhes foi ofuscado pelo sofrimento… Como se consubstanciaram em lágrimas, correram nos rostos, cavaram sulcos profundos e esconderam o terno e nacarado brilho característico das pérolas!
Os velhos trapos, ficam vulneráveis, esgaçam facilmente, e as cores vão desbotando. A sua fragilidade vai-os relegando para a arca dos trapos, vai-lhes dando funções ainda úteis mas depreciativas, onde se desgastarão progressivamente até deixarem de ser pano e restar um emaranhado de fios podres e inúteis, tão inúteis que já nem servem para lavar o chão e terminarão por aí ao pó, ao vento e à chuva, esquecidos, pisados, misturados com lama, na terra, até que com ela se confundam…
Há gentes tratadas como trapos destes. Onde estão as suas pérolas? Nem a recordação delas prevalece numa mente descolorida, desmemoriada, esvaziada… Do colar só resta a sequência, o fio que deveria receber e arrumar as pérolas, os dias, com tamanhos flutuando nas vivências de cada um… O mesmo tempo medido em várias dimensões, e em variados padrões…
Outros, são cuidadosamente arrumados em prateleiras, criadas para esse fim. Aí, estão ao abrigo da chuva e do vento, calmamente aparando os seus temporais interiores, fustigados pela falta de amor, de carinho, pela presença da saudade do seu próprio espaço, da sua própria vida que lhe é negada, arrebatada, decidida com o seu querer forçado ou alienado ou esquecido ou incapacitado, mas para sempre perdida a fábrica das pérolas perfeitas e belas.
Há ainda os que lúcidos e conscientes de que as capacidades se foram, aceitam docemente o que lhes traga certeza do cumprimento das necessidades básicas. São talvez os que nunca tiveram sonhos e viveram sem interrogações, sempre numa atitude de braços abertos ao destino…
Mas há os que continuam a não acreditar que com os anos vem a ruína e teimam em encontrar sempre novos caminhos, que tornem os dias úteis, contáveis e ridentes. Bem-haja a estes que não sendo muitos, são os maiores em exemplo. Louvemos ainda aqueles que ajudam, quer em ambiente familiar ou fora dele, a manter esta sanidade do gosto pela luta e pela vida…
São assim, tão variadas as pérolas desse colar, para quem as vive ou viveu, não raras vezes, tão descoloridas para quem as olha! Todas transportam o vivido, a experiência o sabido. Pelos ancestrais conhecimentos, pelas raízes biológicas, afectivas e cognitivas ganharam o direito a ser olhadas, admiradas, respeitadas e sobretudo acarinhadas, por todos os que num afã pleno de vida e de ascensão, estão no auge, a fabricar as suas pérolas.
Jesus Varela
(A ideia de que os anos vividos são pérolas acomuladas, foi retirada há tempos, do blog duma amiga (http://jelicopedres.blogspot.com) sugerindo-me esta divagação sobre o tema)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

RETALHOS DUM DIA A DIA

Quantas pessoas passam, no Terminal do Campo Grande, todos os dias, de manhã á noite, num entrar e sair frenético!
É assim a vida da cidade. Passamos no mesmo sítio todos os dias, como cegos. Passei ali milhares de vezes. Sei que existe cá fora uma florista mas nunca olhara com atenção para ela ou para o espaço que utiliza.
Há dias, uma mulher, sentada ao meu lado no autocarro, comentou: “Coitada, com aquela idade já deveria estar em casa a descansar”. Olhei pela janela e percebi que falava da florista. Mas ia tão absorta nos meus pensamentos, que nem nesse instante lhe prestei atenção.
Dias depois, de manhã, ao descer do autocarro e quando ia entrar na estação, vi a velha florista que carregava vasilhas com água. Eram quatro e enquanto andava alguns metros, com duas vasilhas, deixava pousadas no caminho as outras duas, que de seguida ia buscar. Assim, por etapas trazia a água, provávelmente para mergulhar as flores durante o dia.
Num momento vi tudo. A sua idade que deve ser muita, o seu corpo, magro e curvado, o seu ar cansado mas vivo, o esforço que despendia ao carregar a água, aquela multidão que por ela passava num vai e vem automático, sem olhar, sem ver, sem ajudar.
Fiquei parada, com vontade de gritar: “ajudem”. Não o fiz e dei-me conta de que o espaço entre as vazilhas e o local onde estavam os haveres da venda de flores se estava a encurtar cada vez mais. Então fui ajudá-la. Levei duas vasilhas, uma de cada vez, e verifiquei que eram pesadas. Depois, sem lhe dizer mais nada segui o meu caminho e acenei-lhe como resposta ao seu gesto de agradecimento.
Porque o fiz naquele dia? Porque me indignei com a indiferença geral que sempre foi também minha? Provavelmente, porque percebi que se ela trabalha naquela idade e daquela maneira tão dura, deve ter uma razão muito forte. E eu posso vir um dia a passar pelo mesmo. Foi isso? Foi necessário identificar-me com a situação para rasgar a cegueira e entender a injustiça?
Continuei a passar por lá. Um dia comprei-lhe flores. Nunca mais a vi montar o seu local de venda.
Jesus Varela
Junho de 2007