domingo, 14 de fevereiro de 2010

RETALHOS DUM DIA A DIA

Quantas pessoas passam, no Terminal do Campo Grande, todos os dias, de manhã á noite, num entrar e sair frenético!
É assim a vida da cidade. Passamos no mesmo sítio todos os dias, como cegos. Passei ali milhares de vezes. Sei que existe cá fora uma florista mas nunca olhara com atenção para ela ou para o espaço que utiliza.
Há dias, uma mulher, sentada ao meu lado no autocarro, comentou: “Coitada, com aquela idade já deveria estar em casa a descansar”. Olhei pela janela e percebi que falava da florista. Mas ia tão absorta nos meus pensamentos, que nem nesse instante lhe prestei atenção.
Dias depois, de manhã, ao descer do autocarro e quando ia entrar na estação, vi a velha florista que carregava vasilhas com água. Eram quatro e enquanto andava alguns metros, com duas vasilhas, deixava pousadas no caminho as outras duas, que de seguida ia buscar. Assim, por etapas trazia a água, provávelmente para mergulhar as flores durante o dia.
Num momento vi tudo. A sua idade que deve ser muita, o seu corpo, magro e curvado, o seu ar cansado mas vivo, o esforço que despendia ao carregar a água, aquela multidão que por ela passava num vai e vem automático, sem olhar, sem ver, sem ajudar.
Fiquei parada, com vontade de gritar: “ajudem”. Não o fiz e dei-me conta de que o espaço entre as vazilhas e o local onde estavam os haveres da venda de flores se estava a encurtar cada vez mais. Então fui ajudá-la. Levei duas vasilhas, uma de cada vez, e verifiquei que eram pesadas. Depois, sem lhe dizer mais nada segui o meu caminho e acenei-lhe como resposta ao seu gesto de agradecimento.
Porque o fiz naquele dia? Porque me indignei com a indiferença geral que sempre foi também minha? Provavelmente, porque percebi que se ela trabalha naquela idade e daquela maneira tão dura, deve ter uma razão muito forte. E eu posso vir um dia a passar pelo mesmo. Foi isso? Foi necessário identificar-me com a situação para rasgar a cegueira e entender a injustiça?
Continuei a passar por lá. Um dia comprei-lhe flores. Nunca mais a vi montar o seu local de venda.
Jesus Varela
Junho de 2007

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