segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MARCA ANÓNIMA

Era um vulto enrodilhado. Identifiquei umas calças de ganga azuis e uma camisola da mesma cor. O braço esquerdo rodeava a cabeça deixando visível a nuca. Cara voltada para a calçada, nada foi visto. Tudo adivinhado…

Uma jovem de 16 ou 17 anos, vulto esguiu e flexível, sentada no portal duma garagem, debruçada sobre o passeio, enrolada sobre si mesma, numa qualquer rua de Lisboa. Mas o que me saltou à vista e me fez reparar, foi aquele gesto, à partida sem sentido, mas podendo ter o mais profundo deles.

Com um marcador preto, cobria integralmente um paralelipípedo da calçada. Só um. Camada sobre camada, com gestos repetitivos e impregnados de força. Como quem descarrega raivas acomuladas, deixando numa marca sem rosto, o significado daquele momento. Restará uma realidade perdida e ignorada, ausente da pessoa e circunstância que a criaram. Marca anónima de alguém e de alguma coisa.
Jesus Varela

A NUVEM

“Não lhe faço mal! Dê-me qualquer coisa. Tenho fome!”. Foi assim que me abordou. Olhei-a com estranheza. Porquê a primeira parte da frase? A sua aparência inspirava mais pena do que medo. Pequeno vulto feminino. Baixa e muito magra, cabelo curto, alourado. Por todo o corpo crostas, confirmavam o cancro de pele que informou ter. A fome talvez fosse também uma realidade. Era bem possível!

Duas vezes a enconrei no espaço duma hora e sempre a mesma ladainha, sempre a mesma introdução…

Fiquei a meditar naquela mulher ainda jovem. “Tenho fome” uma frase que toca, atormenta e motiva a dar. Uma frase mágica, pois lembra essa necessidade básica à vida. Uma necessidade comum tornada realidade quando faltam meios para a satisfazer. Todos podem sentir fome, se as circunstâncias se compuserem nesse sentido. Nada é seguro na vida, e o mais rico hoje, pode amanhã ser apanhado numa situação para a resolução da qual seja impotente. “Tenho fome”, frase universalmente entendida e temida mesmo pelos que nunca a sentiram, não a sentem e pensam que jamais virão a senti-la.

Que vida aquela, irmã de tantas outras, passando os dias a calcorrear a cidade, de mãos estendidas, mendigando a quem passa. Perdidos objectivos, tapados horizontes, uma só certeza: o dia de hoje, por entre dores e vícios, o tanto que é uma vida, perdida no nada dum dia a dia, espera por um amnhã que traz a mesmíssima coisa…

E os encontros com outros, continuam a acontecer. Cruzamento com passos dirigidos para programados percursos, sem interromperem, alterarem ou retardarem , depois daquele breve encontro. Tal como os dias continuarão a sua torrente natural de sequência clara e escura, quente e fria, chuvosa e ensolarada. Uma nuvem passa nessa paisagem e só por momentos ensssobra a claridade tornando-se notada…

Aquele não era um dia especialmente bom. Não raiava a luz da felicidade ou do contentamento dentro de mim mas "ela" foi a nuvem que algo ensombrou e me levou a vê-la.
Jesus Varela